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House e o Deserto do Real… por Murilo.

Há muito tempo tenho tentado escrever algo sobre a série de TV “House” aqui para o blog; para quem caiu na terra ainda há pouco, trata-se de uma série médica, nos moldes de “Plantão Médico (E.R)” só que as histórias não se passam necessariamente na emergência do hospital e sim no (criado) Departamento de Diagnósticos; a grande sacada dos autores foi transformar o processo de diagnóstico numa investigação misteriosa, e o personagem principal num verdadeiro Sherlock Holmes – aliás as referências ao famoso personagem de Arthur Conan Doyle são muitas na série. Mas o grande trunfo, o que sustenta o sucesso da história é a personalidade do personagem central o Dr. Gregory House (Hugh Laurie), ele simplesmente implode a imagem histórica do médico herói humanista e a substitui por um sujeito podre. Completamente egoísta, auto-destrutivo, anti-ético, sarcástico, misantropo, racista, sexista, insubordinado, irônico, insensível e cujo qual os pacientes só o atraem pelo desafio intelectual que representam suas doenças desconhecidas, enfim, um porco, um completo babaca, frio e calculista, porém, genial naquilo que faz, capaz de resolver casos que ninguém consegue, e diagnosticar pessoas só de olhar para elas.

O problema teórico que me impedia de escrever o texto era que a simples resposta pergunta “por que gostamos tanto de House?”, isso é, o fato de ele representar em alguma dimensão algo comum a todos – que no fundo somos todos cretinos e mentirosos – não era suficiente. Essa simples identificação não respondia a dúvida a ponto de merecer um texto. Até que, num belo dia de chuva, chegou-me o livro “Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno” do filósofo, psicanalista e comedor de criancinhas nas horas vagas, e esloveno ainda por cima, Slavoj Zizek. O texto é composto por cinco ensaios que vão de Kieslowiski até os irmãos Wacholski – passando por Hitchcock, Tarkowiski e (o melhor) David Lynch, e na composição dos ensaios o autor cita uns outros 150 filmes e uma infinidade de personagens. No ensaio n° 4 intitulado “David Lynch ou A Arte do Sublime Ridículo”, Zizek procura fazer uma análise lacaniana do Filme “A Estrada Perdida” (Lost Highway, 1997) de Lynch, para tal o autor tem a necessidade de colocar em jogo as noções de ‘transgressão inerente à ordem simbólica’ e ‘fantasia fundamental’, além de outras.

Pois bem, quando vai falar sobre a estrutura da transgressão inerente e como ela funciona hoje, o autor usa o personagem Melvin Udall interpretado por Jack Nicholson no bom filme “Melhor é Impossível” de James L. Brooks (1997); trata-se de um escritor quase tão insuportável quanto House. A Estrutura da tal ‘transgressão inerente’ funciona mais ou menos assim:¹ de uma lado temos a ordem simbólica das aparências, do cotidiano, em que seguimos as regras, a ética, respeitamos os coleguinhas, acordamos cedo, vamos trabalhar, voltamos para casa, dormimos, e fazemos tudo de novo, é o dito ²’NORMAL’ nosso. Por outro lado temos nossa ética própria, nossa vontade própria, nossos desejos íntimos, e aquela voz interior, as vezes consciente as vezes não, que vive mandando a gente mandar toda essa m* de ‘NORMAL’ para o inferno e gozar a vida ao máximo. E durante toda nossa vida e por boa parte da nossa história esse segundo lado é reprimido, tido como perigoso, danoso e/ou subversivo. Qualquer libertação desse lado sempre foi vista com maus olhos pela ordem estabelecida (patriarcal). Basta lembrar aqui da Brasilândia em épocas de ditadura o tanto de gente que foi perseguida, chutada, investigada e acusada de ser subversiva, por ser escandalosa, e apesar disso a própria ditadura financiava filmes de porno-chanchada; eis a transgressão inerente, o “erro” que precisa acontecer para a afirmação do “certo” da ordem simbólica.

Pois bem, a época das ditaduras passou – ou ainda esta passando – e vivemos no reino da tolerância e do diálogo como ideologia oficial³. Sendo assim, o que pode transgredir uma ordem que tolera a transgressão? A intolerância. Seja ela sexual, racial, social, religiosa, etc. A intolerância sempre é abominada pelo ocidente renascentista, esclarecido, humanista pós segunda guerra.

Agora, o que diabos o House tem a ver com essa p* toda? Ele é aquilo que a nova ordem abomina, o egoísta intolerante por excelência. E a questão volta, por que gostamos de personagens como House e Melvin Udall? Porque eles realizam de de forma brutal uma fantasia fundamental da constituição do espírito desse homem da nova ordem.

‘Fantasias fundamentais’ são uma espécie de planejamento dos nossos desejos que sabemos que não podemos realizar plenamente porque ofendem de alguma forma a ordem do NORMAL. São elementos psíquicos constituintes da subjetividade, e que são sempre, contrários a ordem do NORMAL – se não o fossem não seriam fantasias. Quando se instala uma ordem tolerante a fantasia deverá ser a intolerância. Mas se o House realiza por meio de sua intolerância fantasias fundamentais, e isso, como foi dito, é subversivo, por que ele não é chutado, perseguido e investigado como um tropicalista dos anos 70? Eis o perigo da nova estrutura da transgressão inerente. Melvin Udall é insuportável, mas “sabemos” que ele se redimirá no final e se revelará dono de um grande coração. Em ‘House’, a série começou a tomar o mesmo caminho, e perdeu audiência, a solução dos produtores foi não mudar a personalidade de House e sim o efeito de suas ações, o que antes causava sofrimento nas pessoas ao seu redor agora acaba fazendo bem a elas e, por consequência, ao próprio House. Enfim, aquela resposta de que gostamos de House por identificação é mais perigosamente verdadeira do que parece, isso é, gostamos daquele sujeito podre, mas só porque sabemos que ele(ou suas ações), de algum modo, se redimirá; na verdade não gostamos dele, e sim da consciência de que ele mudará e se adaptará ao NORMAL. E em um segundo nível a coisa fica mais perigosa, quando esses personagens realizam de forma brutal certas fantasias fundamentais, tornando-as reais, elas são destruídas, pois perdem seu caráter fantástico, e a subjetividade se esvazia e se remolda com seu contrário, a ordem predominante. Resumindo, gostamos de House, pois intimamente ele realiza nossas fantasias subversivas; mas só o toleramos porque sabemos que no fim ele se redimirá; sabemos não, temos fé, cremos desesperadamente na sua redenção e que ela mostre que nós, que gostamos dele, não somos de modo algum subversivos, apesar de nossas fantasias.

O perigo é que a aceitação da transgressão pela ordem simbólica das aparências, em certos níveis acarreta na reafirmação dessa ordem, tolhendo nossa capacidade de mudança psicologicamente, no nível do indivíduo, na celula mesma de qualquer organização social. E assim a onda politicamente incorreta – de heróis que mentem para salvar ( filmes como Watchmen e Batman: O Cavaleiro das Trevas) além de séries como House ou Dexter e muitos outros – acaba por se revelar como agente da manutenção da ordem política que aparentemente transgride. E os questionamentos em relação a essa ordem, suas injustiças, seus absurdos e suas incoerências acabam tendo cada vez menos solo para crescer, na medida em que a arte, solo histórico por excelência, é usada como dispositivo de instrumentalização da cultura para a dominação ideológica.

Nietzsche ao falar da modernidade gostava de usar a frase apocalíptica e enigmática “O deserto cresce”. O próprio Slavoj Zizek tem um livro chamado “Bem Vindo ao Deserto do Real”, frase usada por Morpheus no filme “Matrix” (1999) quando reintroduz Neo na sua antiga realidade cotidiana NORMAL mas agora sabendo da verdade. Heidegger diria que o Deserto toma conta de nós como um destino.4 Pior do que destruir, a desertificação de nós mesmos impede que algo de novo cresça no lugar do destruído, e além disso, a desertificação se expande para todos os lados e acaba com qualquer possibilidade de mudança, ou melhora, que no caso daria no mesmo, e mesmo com qualquer possibilidade de questionamento sobre uma possível mudança. E agora uma última pergunta: como se escapa de um deserto do tamanho do mundo?

 

1- Eu não estudo psicanálise e não to muito aí para o fato de você estudar se for o caso, o que eu tento aqui é interpretar o livro do Zizek.

2- Palavra extremamente pesada e que merece um texto futuro.

3- Não necessariamente prática.

4- Heidegger – Loparik, Z. – JZE Editora. – Col. Filosofia Passo-a-passo. Rio de Janeiro, RJ. – 2004

 

 

 

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